EPISÓDIO DA GUERRA COLONIAL
Foi muito marcante o choque perante tamanha desgraça naquele dia 4 de Julho de 1970. Aquartelamento na Missão do Bembe, distrito do Uíge, Norte de Angola. Era dia de reabastecimento, um Grupo de Combate tinha-se deslocado ao Tôto, a cerca de 35 km. Dois dias por semana fazia-se este serviço, pois era preciso abastecer o armazém de produtos alimentares. O chamado MVL, Movimento de Viaturas Logístico, um longo comboio formado por camiões civis, escoltado por viaturas militares, vinha de Luanda e deixava a carga no Comando de Sector instalado no Tôto. As diversas Companhias espalhadas na zona iam nesses dias, duas vezes por semana, fazer o reabastecimento. Na estação seca, também conhecida por época do cacimbo, fazia-se o percurso numas duas horas, mas na época das chuvas chegava a demorar-se cerca de 6 ou 7 horas para cada lado. As viaturas, sobretudo a Berliet (camião de carga) ficavam enterradas no lamaçal, pois a picada já de si bastante irregular, ficava totalmente inundada e frequentemente armadilhada, normalmente grandes buracos no chão cobertos de folhas de palmeira ou simplesmente árvores enormes cortadas e atravessadas na picada. Era o calvário dos que tinham que alinhar, para além do natural sobressalto.
Naquela tarde, ouvi o barulho de um ou dois Unimogs (viatura igual à da foto) a chegar e um grande alvoroço ali ao lado na enfermaria. Assim que vi os Unimogs apercebi-me do desastre. Grande correria, sangue pelo chão e a azáfama na enfermaria. Não havia mais de uns 40 homens no aquartelamento, mas a maioria foi para junto da enfermaria para ajudar no que fosse necessário. Do total de 6 ou 7 enfermeiros, incluindo o responsável, um Furriel Miliciano, deviam estar uns 4. Os enfermeiros iam aplicando os primeiros socorros e preparando os feridos mais graves para a repectiva evacuação de avioneta. Todos queríamos ajudar. A certa altura o Furriel Miliciano que tinha sofrido a emboscada, grita, falta F... está em cima do unimog, enquanto se agarrava à cabeça, desesperado. Corri à viatura que estava ali fora, por entre restos de roupas ensanguentadas, armas e objectos de logística ali deixados, estava um corpo tapado por um ponche, destapei-o e vejo aquele rosto ensanguentado e de olhos muito abertos, mas já sem vida! Dei a notícia ao responsável do que sobrava do Grupo atingido, o seu desespero que já era imenso. mais aumentou. Pouco depois chegou a informação de que o DO 27 estava a caminho. Dois feridos graves e um que apresentava duas fracturas e algumas escoriações, foram acondicionados na caixa da Berliet, um grupo de ajuda que eu integrava seguiu na mesma caixa aberta. O avião chegou de imediato e levou os feridos (um muito grave) para Luanda. A pista distava cerca de um quilómetro do aquartelamento. Cansado e triste deixei escorrer a água do chuveiro para tentar lavar o corpo e a alma, mas esta estava muito deprimida. Ainda no duche pensei, eu que tinha um grande pavor de alguma vez ter de passar por isto tudo, pensei mesmo que não resistiria, ajudar a carregar feridos, segurar frascos de soro, etc., mas nem tempo houve para pensar nisso, agora ali estava eu.
Uma hora depois, no bar, bebíamos uma cerveja e o responsável pelo Pelotão destroçado, branco amarelado, tristíssimo, com a cerveja na mão, disse: hoje fazia 21 anos. Fazias não, fazes, pois estás vivo, àh! pois estou, respondeu o Furriel Miliciano. Daquele Grupo de Combate composto por 28 homens, sobraram ilesos 10. 11 mortos, 6 feridos e 1 desaparecido. Éramos todos tão jovens!
"...Malhas que o império tece, está morto e arrefece o Menino de Sua Mãe..."